Por Suzana Araújo
E se o resíduo que consideramos um problema se tornasse parte da solução para a crise climática? Em Hokkaido, ao norte do Japão, uma iniciativa local tem mostrado que isso é possível. Ali, esterco de vaca está sendo transformado em combustível de hidrogênio para abastecer tratores, carros e estruturas rurais. O que era considerado lixo malcheiroso agora é parte de uma cadeia de energia limpa e circular.
O projeto, criado em 2015 com apoio do Ministério do Meio Ambiente do Japão, é um exemplo poderoso de como tecnologias sustentáveis podem nascer da realidade local. A fazenda de Shikaoi coleta dejetos de mais de um milhão de vacas e, por meio de um processo de digestão anaeróbica, transforma o resíduo em biogás, que depois é convertido em metano e, por fim, em hidrogênio. Tudo isso com um impacto ambiental menor do que os processos tradicionais, que costumam usar metano extraído do subsolo.
Essa abordagem tem um diferencial: reduz a emissão de metano (gás 25 vezes mais potente que o CO2) que seria liberado pelo esterco. Além disso, o carbono presente no processo é considerado “neutro”, pois é reciclado da vegetação consumida pelas vacas. Trata-se de um modelo de economia circular que alia redução de impacto, reaproveitamento de recursos e autossuficiência energética.
Para quem atua com tecnologia e sustentabilidade, o caso de Shikaoi é inspirador. Não apenas pela inovação, mas pela forma como conecta três pilares essenciais: tecnologia, meio ambiente e comunidade. Como especialista em transformação digital, vejo aqui uma lição valiosa: a transição energética não acontecerá apenas com grandes plantas industriais ou projetos globais. Ela também virá de soluções locais, escalonáveis e conectadas à realidade de cada região.
Apesar dos desafios – como o alto custo do hidrogênio e a necessidade de infraestrutura para armazenamento -, a tendência é clara: cada vez mais países estão investindo em maneiras alternativas de produzir energia limpa a partir de resíduos. E o exemplo japonês está ganhando adeptos: da Tailândia à Universidade de Illinois, várias instituições estudam como transformar resíduos orgânicos (de animais ou humanos) em hidrogênio.
Ao observar esse movimento, não consigo deixar de pensar no potencial que temos no Brasil. Somos um país com forte produção agropecuária, clima favorável e uma biodiversidade única. Por que não desenvolver nossas próprias soluções de bioenergia? Iniciativas como essa poderiam gerar emprego, reduzir impactos ambientais e nos posicionar como referência em energia limpa.
A energia do futuro pode sim estar nos lugares mais improváveis. O desafio é enxergar valor onde outros vêm apenas resíduo. A inovação mais transformadora é, muitas vezes, aquela que nasce do simples, do cotidiano, da realidade local. E, nesse sentido, a lição de Shikaoi é clara: o futuro pode estar embaixo dos nossos pés – literalmente.
Suzana Araújo é Especialista em tecnologia e inovação, CEO da Techtalksa, atua há mais de 20 anos com gestão em TI, transformação digital e inteligência artificial. É mentora, palestrante e criadora de conteúdo sobre o impacto da tecnologia na sociedade.
Fonte: BBC Future – https://www.bbc.com/future/article/20240319-how-japan-is-turning-cow-poo-into-clean-hydrogen-fuel